Eu tinha seis anos de idade
e morava no sertão de Crateús, no Ceará, quando fiquei sabendo da morte
do meu pai. Ele teve um trágico fim: foi morto pelo meu tio, seu
cunhado, lá para as bandas de um seringal que ficava na fronteira com a
Bolívia. De meu pai, conheci apenas seus “bagos”, que meu tio trouxe
embebido em álcool, dentro de uma lata de leite, como prova de sua morte
e entregou ao meu avô. Este, serenamente e altivo, chamou minha mãe,
mostrou-lhe a “encomenda” e disse-lhe, “ agora você está liberada do
compromisso, arrume outro homem, case e vá criar seu filho”.
Esta estória ficou entranhada em meu
pequeno mundo de criança e acompanhou-me insistentemente,
aprisionando-me em um pesadelo que somente anos depois, pude
desvencilhar-me, após ir até à cidade de Guajará-Mirim, onde era
localizado o Seringal Renascença. Neste lugar, conheci a outra parte da
estória, e nela encontrei também um mundo povoado de tristeza,
sofrimento e mais tragédias.
Meu pai com dezoito anos, após
engravidar minha mãe, com apenas quinze, decidiu migrar para a Amazônia,
envolto no sonho da riqueza fácil, assegurado pelos imensos seringais
que tiravam o sono de todo jovem sertanejo. Meu avô, meio a contragosto,
com uma filha embuchada dentro de casa e servindo de chacota para os
vizinhos e familiares, concordou e apoiou a viagem do genro, ele quando
jovem, também alimentou por um tempo o mesmo sonho, mas fora
desencorajado pelos pais.
Na véspera da viagem, no alpendre da
casa, reunidos em torno de uma lamparina, meus pais ouviram a sentença
definitiva de meu avô. “Minha filha, seu marido, que não é marido,
porque ainda não casaram, vai partir dentro de poucos dias para a
Amazônia. Você, provavelmente terá seu filho nesta casa, sem a presença
dele. Mas diante da imagem de Nossa Senhora Aparecida, prometa que vai
esperá-lo o tempo que for necessário. Porque assim deve ser feito”. “E
você meu genro, prometa que voltará com riqueza ou sem riqueza, para
cuidar de sua mulher e de seu filho que não demora a nascer”.
Meus pais, de mãos dadas e exalando
todo o afeto do mundo, acenaram com a cabeça afirmativamente e
prometeram honrar o compromisso. Poucos dias depois, meu pai partiu com
um amigo, também da sua idade. Minha mãe ficou no terreiro, sozinha, com
a mão singelamente pendida sobre a imensa barriga, chorando e
lamentando a sorte, vendo meu pai e seu amigo se afastarem por entre as
palmas, sem olhar para trás uma única vez. Aquela foi a última vez que
se viram.
Eu estava com cinco anos de idade e meu
pai ainda não tinha voltado e nem mandara notícias. Um certo dia,
fomos surpreendidos pelo retorno do amigo do meu pai. Foi aquele
alvoroço em nossa casa, também imaginávamos que meu pai estava a caminho
e que bateria em nossa porta a qualquer instante. Mas a decepção nos
entristeceu durante dias, o amigo de meu pai disse que quando
desembarcaram do navio em Porto Velho, ele foi mandado para o seringal “
Oco do Mundo”, subindo o Rio Abunã e que meu pai fora enviado para um
seringal às margens do Rio Mamoré e que nunca mais tinham se encontrado.
Minha mãe chorou durante dias, comovido
com sua dor, eu também chorava, embora não entendesse ainda os
labirintos da aflição humana. Meu avô, também comovido com a situação,
chamou um dos filhos e disse-lhe, vá arrumar teus apetrechos que dentro
de poucos dias viajarás para a Amazônia, irás saber notícias do marido
de sua irmã, “traga-me notícias, se ele estiver morto, traga-me uma
prova, se estiver vivo, traga-o de volta, se arrumou outra família,
traga-me os bagos dele”.
Meu tio partiu com destino certo, o
Seringal Renascença em Guajará-Mirim. Subiu o Rio Mamoré e após dias
perambulando de seringal em seringal, chegou ao seu destino. No Barracão
obteve informações que seu cunhado estava em uma Colocação denominado
“Vai quem quer”, nas proximidades de um pequeno povoado. Chegar à casa
do cunhado não foi difícil, pois todos o conheciam no povoado, um guri
que estava às margens do igarapé foi o encarregado de levá-lo à casa do
homem que engravidou e deixou sua irmã no Nordeste e nunca mais mandou
notíciais.
O medo e o susto tomaram conta da
humilde casa de assoalho feita de paxiúba e coberta de palha de Buriti. O
cunhado não voltara mais porque tinha uma nova família, mulher e três
filhos. Contara que a vida no seringal era difícil e que nenhum
seringueiro conseguia quitar as dívidas e retornar de onde veio, por
isso arrumou outra família e foi obrigado a permanecer no seringal.
Cheio de novidades, os dois foram ao
único boteco do povoado tomar cachaça para comemorar o encontro. Beberam
e prosearam até o entardecer. Quando resolveram retornar, meu tio então
chamou o proprietário do boteco e pediu-lhe uma lata de leite e outra
de álcool e foram embora. No caminho, pouco distante do povoado, ele
puxou uma peixeira que meu avô usava para capar bode e num gesto rápido e
seguro jogou no chão a buchada do homem que desonrou sua irmã.
Ainda envolto em ódio e sede de
vingança, meu tio cortou-lhe os bagos, derramou o leite fora, encheu de
álcool o vasilhame, colocou os bagos dentro, tampou e sumiu na noite
escura, deixando mais uma família desamparada e a mercê das injustiças
do Seringalista. Um ano depois do ocorrido, meu tio chegou em Crateús e
solenemente disse para o meu avô, “encontrei o cabra da peste com
outra mulher e filhos”, eis aqui o que restou dele.
Meu avô, homem acostumado a honrar as
tradições e a “palavra dada”, despejou no terreiro o conteúdo da lata e
mandou-me trazer uma lasca de lenha da fornalha e jogar em cima para
que o fogo desse cabo do resto. Obedeci meu avô, sem nunca imaginar que
aquela seria a única parte do meu pai que eu conheceria. O cheiro de
carne queimada e de cinzas impregnou minha alma e me acompanha
diuturnamente, feito um cão medonho, durante muito tempo.
Anos depois, parti para Guajará-Mirim,
resolvido a conhecer o que restou daquele homem, no rosto dos meus três
irmãos. Pouca coisa desenterrei neste sertão verde, tão cruel e desumano
quanto o meu. Um seringueiro que conheceu meu pai, disse-me que meus
irmãos foram levados para o barracão do seringal e nunca mais os viu,
eram duas mocinhas e um menino, este muito parecido comigo, disse o
velho seringueiro.
Demorei em Guajará-Mirim o suficiente
para saber que ele morrera ainda criança de impaludismo e que minhas
duas irmãs viraram putas e viviam vagando de seringal em seringal. No
trem de volta para Porto Velho, fui pensando em mais esse flagelo, mas
pelo menos deixei no fundo das águas escuras do Mamoré, todos os meus
demônios enterrados e o cheiro de carne queimada e de cinzas que me
acompanhava desde criança, mesclou-se à fumaça pastosa e densa do látex
defumado, impregnando toda a floresta e a alma de meu pai.
Autor: Simon O. dos Santos – Mestre em Ciências da Linguagem e membro da Academia Guajaramirense de Letras – AGL