1972, um ano para esquecer! Ponto final de uma história de amor entre um povo abandonado e sua amada.
No
dia anterior, ao deixar a capital de Rondônia na máquina 18, de sua
predileção, ele acelerou cadenciando o equipamento, pois a segurança
obrigava-o a transitar pelo Triângulo portovelhense em marcha lenta para
depois fazê-lo mais velozmente, após o que, em velocidade de
“cruzeiro”, leva-a a atingir, se muito, os 25 Km por hora.
Mal
sabia ele que a sorte de uma população estava selada: mais solidão,
mais isolamento. Quando manejou o trem nem desconfiava da triste sina
que o aguardaria no dia seguinte quando fizesse desembarcar as dezenas e
dezenas de pessoas que naquela noite dormiriam no Abunã, entregando-as
24 horas depois da partida bem na orla do caudaloso rio Mamoré.
É
que o maquinista Januário Sena* estava escalado para aquela viagem.
Como o cerimonial exigia, vindo lá a composição desde a Capital, já no
Km 18 - na ponte do Igarapé Bananeiras -, ele, peito “tufado”, emoção
correndo à solta em velocidade maior do que aquela da máquina que
liderava, ergueu a mão e puxou a corda escura pelo uso e pelo tempo,
disparando o apito; e, ansioso, pensava na sua mãe, rezadeira e
benzedeira das boas, parteira das melhores.
Como
se fizesse parte de um show, Mãe Balbina, cabelos brancos, rosto com
poucas rugas, esperava na janela da casinha ao lado da ferrovia, feita
de taipa coberta com palha de ouricuri, o filho tão garboso. Este, ao
passar, sorriso largo no rosto, dava-lhe um adeusinho enquanto diminuía à
marcha para “atracar” minutos depois na gare, na estação apinhada de
gente.
Pessoas
e cargas desembarcadas, dirigiu-se ao Triângulo guajaramirense para
manobrar o equipamento líder e os vagões para serem limpos, deixando-os
em posição de retorno para a viagem de volta, no dia posterior.
Abasteceu-a do líquido universal, agradecendo a mão dadivosa da caixa
d’água preta, quase insolente, mas orgulhosa da função que vinha
cumprindo há décadas, desde 1912.
Outro
maquinista assumiria o comando da nave, enquanto cumpriria o abençoado
rito de descanso ao lado da sua veneranda e respeitabilíssima mãezinha.
Às
17 horas, já em seu lar, enquanto sorvia um café da hora, ouviu o apito
das duas máquinas a vapor disponíveis estacionadas no pátio, uma delas
aquela que trouxera com abnegada devoção.
E arrepiou-se todo! Morreu alguém da ferrovia? – questionou-se.
Pegou
a bicicleta e retornou à estação. E a cena o enterneceu! Pessoas do
quadro da empresa choravam e se abraçavam. Familiares dos funcionários
tremiam e, incrédulos que estavam, repassaram para Januário a infeliz
notícia: Brasília tinha decidido encerrar as atividades da Ferrovia de
Deus, a Mãe extremada do Território, que deu vida a Porto Velho e a
Guajará-Mirim e tantas outras filhas. E naquele fatídico 10 de julho de
1972 ele se comoveu tanto que chorou. Desolado, verteu nas lágrimas a
revolta dos que se sentiam traídos, vilipendiados e, agora sem chão,
inseguros e desnorteados.
A
partir daí, Januário, com 48 anos, separado da mulher, sem filhos,
nunca mais foi o mesmo. Lágrimas já não rolavam mais pelo seu rosto,
porém seu peito petrificou. Seu sorriso, antes tão amplo, enrugou; já
não podia mais alegrar-se. A ferrovia era sua vida, parte de sua família
e seu encanto. A alegria de antes transformou-se em sentimento de perda
irreparável. Trancou a vida no quarto, pouco se alimentava, e fumava e
fumava, tossia e tossia. Descobriu-se tísico, meses depois.
Morreu
de desgosto! Tempos mais tarde sua mãe também adoeceu, desvanecida com a
morte do filho, seu orgulho e sua esperança, seu alento e sua estrela
guia, razão do seu viver.
Morte
que foi prematuramente anunciada pelo apito fúnebre naquela tarde em
face do desalento que expressou, e que depois se soube ter acontecido no
mesmo horário tanto na cidade de Porto Velho como aqui em
Guajará-Mirim. O que antes representava um som harmônico, trinar gostoso
de ouvir, abençoado cantar, e que nunca mais seria ouvido nestas terras
do poente, sinalizou o último suspiro das locomotivas, que desde então
se emudeceram.
Que
pena! É de dar dó ver tantas pessoas sonhando em vão com o retorno do
apito do trem da ferrovia da integração, que proporcionava elo
econômico, social e afetivo como a capital portovelhense.
Sentimento de vazio que as BR-425 e 364 não conseguiram preencher!
* PAULO CORDEIRO SALDANHA: Nasceu em 1946, em Guajará–Mirim, Rondônia. É
Advogado e hoteleiro. Foi Presidente de Bancos Estaduais de Rondônia e
Roraima, Diretor do Banco da Amazônia e Diretor–Geral do Tribunal
Regional do Trabalho da 14º Região. Cronista e Romancista. É Membro
Fundador da Academia Guajaramirense de Letras-AGL e Membro Efetivo da
Academia de Letras de Rondônia-ACLER.