Convém
decifrar, de plano, esse sujeito com tantos predicados, conhecido
informalmente como Eurácio Torito, morador transitório nesta fronteira
Brasil/Bolívia, em Guajará-Mirim.
De
vez em quando o vejo por aqui e conversamos descontraidamente. Como
parece ser elemento tosco, vejo-o além: para mim, pelas reações, nem
bipolar chega a ser, ultrapassa esse limite... é multipolar. Às vezes é
um lorde, noutras um monge tibetano; costumeiramente se transforma em
insano cidadão, embora sempre trazendo consigo a rara inteligência que o
privilegia. Mas a deseducação não o aperfeiçoa nas sendas da sabedoria.
Quando
menino ele tinha uma tara: comer melancias ao alvorecer, ao meio dia e
ao despedir do sol, em qualquer lugar e a qualquer hora que fosse
possível.
Agora decifro a melancia, segundo os dicionaristas: “o nome de uma erva trepadeira rastejante originária da África.”
Eram, aqui e naquela época, caras e escassas.
Desde
os cinco anos Eurácio sonhava com as tais melancias. Garotinho ainda,
era cabeçudinho e barrigudinho - em face da enorme pança que disfarçava
as toneladas de bichas que guardava em suas entranhas e que mexiam e
remexiam ensandecidas, querendo receber em seus interiores a cor
vermelha das famosas “Citrullus lanatus”. E repito: àquela época, frutas
raras e de alto valor.
E
também compondo o físico de Eurácio, naquele tempo, já com onze para
doze anos, se viam suas canelinhas secas e finas, riscadas pelos cortes
de arame farpado das casas vizinhas para onde convergiam as suas
andanças buscando recolher também cajás, cajaranas, abacates e mangas,
canelas essas que mais pareciam gravetos de mata terciária, tortas e
sujas, tisnadas de carvão.
Um
dia, Rinaldo dos Anjos Arcanjo convidou Eurácio para passear no seu
sítio, um lugar aprazível na beira do rio. E ele foi exultante! Parecia
pinto no lixo, feliz da vida pela oportunidade do passeio...
Lá
chegando, seus olhos pareciam estar descortinando o Paraíso: viu uma
plantação de melancias em instante de colheita. E perguntou Eurácio a
Rinaldo, incrédulo:
–Colega, coleguinha, esse melancial é todo teu?
Em
seguida teve uma vertigem em face da violenta emoção que lhe dominou!
Jamais havia tido tal visão: uma colossal plantação daquela planta
rasteira, verdinha, verdinha e com aqueles abençoados frutos redondos e
enormes. E acabou meio que desmaiando, em transe. Nessa alucinação que
lhe tomou intuiu que aquelas melancias eram suculentas e doces, com a
sua polpa avermelhada lembrando os lábios carnudos da Claudia Cardinale
(atriz italiana bonita e sensual famosa nos anos 60), que, entreabertos,
faziam-lhe um convite à volúpia de um beijo. Mas tal lascívia não lhe
interessava, visto desejar apenas tragar goela abaixo a polpa
‘encarnada’ (diria meu pai) do abençoado fruto.Todavia, no seu sonho aparecia agora um homem interferindo durante o degustar da terceira melancia imaginária, dizendo-lhe:
–Colega, essa fruta africana revela possuir alto teor de água e carboidratos, sais minerais e complexo “B”, bem como cálcio, ferro e fósforo. Mas entre ela e a Claudia Cardinale aí ao teu lado, eu fico com a Claudia!
E Eurásio, ainda no transe:
–Pois então fique com a Claudia, seu ‘desinfeliz’, e não me atrapalhe, pois nesse melancial todo eu sacio o meu desejo carnal...
E então Eurácio acordou do desmaio, embrenhou-se rastejante naquela plantação verdejante e esparramada e comeu não uma, nem duas e tampouco três melancias, e sim onze delas, que estavam violentamente aquecidas em razão do sol a pino. Logo ao dar a última mordida na última porção da décima primeira melancia, seus olhos quase saíram das órbitas, ficando cegueta temporariamente e com as pernas secas totalmente bambas... Mal chegou à sua casa, caiu no alpendre. Foi socorrido.
Horas depois o médico lhe receitava um chá bem forte das folhas de abacateiro, posto que uma diarréia, uma violenta infecção intestinal, estava consumindo a vontade de viver de Eurácio Torito, o menino que adorava melancias.
E ele sobreviveu e está aí comemorando seu aniversário, ainda cabeçudinho, barrigudinho, de canelas secas e bunda chocha, fazendo raiva aos homens e mulheres de boa vontade!
* PAULO CORDEIRO SALDANHA: Nasceu em 1946, em Guajará–Mirim, Rondônia. É Advogado e hoteleiro. Foi Presidente de Bancos Estaduais de Rondônia e Roraima, Diretor do Banco da Amazônia e Diretor–Geral do Tribunal Regional do Trabalho da 14º Região. Cronista e Romancista. É Membro Fundador da Academia Guajaramirense de Letras-AGL e Membro Efetivo da Academia de Letras de Rondônia-ACLER.