Por Paulo SaldanhaTrês personagens, três histórias diferentes, mas que se encontram no sentimento do medo para uns e pavor para os demais.
Ora, segundo o
Houaiss, medo é “temor, ansiedade irracional ou fundamentada; receio”.
Para o caboclo amazônico medo será sempre mais que isso!
Uma pequena aventura,
por mais valente que o amazônida seja, toma contornos de pavor, nome do
medo amplificado que, também o Houaiss justifica como “grande susto ou
temor”.
Pavor terá sentido o
Gabriel, por exemplo, seringueiro lá para as bandas do Rio Ouro Preto
quando, numa das estradas de cortar seringa, eis que se deparou com duas
onças. Ele, sem armas, a não ser uma faca peixeira.
A onça menor
olhando-o nem tchum! achou-o figura de menor importância e seguiu seu
caminho. Todavia, a onça maior partiu para cima dele, com fúria
assassina. Tentou atingir a região da sua cabeça, próxima do pescoço.
Foi exigido um esforço hercúleo para aquele homem de tamanho médio, até
porque era razoavelmente forte, pois, vencer o medo e, assim, superar o
ódio de sua algoz, era imperativo!
Com a faca na mão,
foi golpeando a onça matadora. Que se enfurecia, cada vez mais por conta
das estocadas que recebia, sem poder, contudo, dominá-lo. Num descuido
da pintada, Gabriel subiu numa árvore pequena e a viu sair cambaleante,
toda ensaguentada, num rumo que ele nem desejou seguir.
Gabriel ficou bem
retalhado pelo felino, mas alegrou-se quando recordou que a fera saiu
muito furada, enquanto que ele vivo, viu seus braços, peito e pernas
parcialmente dilacerados.
Quase na mesma
época, eis que Carlos, cearense baixo, também forte, seringueiro
trabalhador e responsável, ansiava, com o saldo de fim de fabrico,
adquirir um revólver 38. Esse, o único sonho de consumo. Iria até a
cidade, compraria um rancho bem sortido, tecidos, máquina de costurar
para a mulher, sapatos e chapéus para os filhos e outras coisas mais.
Mas, do revólver não
abriria mão, posto que, com ele, o seu desejo seria atirar bem na
cabeça do onça, tivesse a cor (pintada, vermelha ou preta) que tivesse.
Seria a sua maior glória, a sua consagração perante si próprio.
Projeto idealizado,
projeto, enfim, cumprido. Baixou no motor do patrão, recebeu o saldo,
foi à zona, na região do Boca Negra, rever a Maria Peituda, após
adquirir o material para a família. E partiu no rumo da cidade
fronteiriça e comprou o objeto do seu desejo: o tal revólver 38. Veio
carregado de balas e com a “bicha” já na cintura.
Cancelou as férias e, para desgosto dos filhos que com ele desceram na lancha, subiu o rio no primeiro motor.
Desembarcou na
colocação e já foi se encaminhando para a mata à procura de Dona onça.
Nesse dia, nenhuma apareceu! À noite até sonhou com elas. No seu
devaneio ora matava a preta, ora a vermelha, mas saboreou na sua
imaginação o tiro na testa da pintada e a queda da bruta ali na sua
frente, distante uns 5 metros apenas. Depois, reconheceu que um sonho
besta sonhara!
No dia seguinte,
chovendo bastante, vestiu a capa, calçou a bota, ambas feitas do látex e
se embrenhou na floresta. Subiu num jirau e ficou à espreita. Nada!
Perto do meio dia, com a chuva já se retirando, eis que Carlos desceu do
jirau e se encaminhou no rumo da própria casa. Numa curva eis que
grande, pintada, garbosa e perigosa, muito molhada ainda, aquele
espécime de felino bem no meio do varadouro o estava espreitando, como
quem desejasse encontrá-lo.
Mas, nesse exato
momento, Carlos, ingressou num processo de estupor, um pavor o atingiu
em cheio, porém, ante a intensidade do espanto “medonho” (diria meu
saudoso pai), não segurou o esfíncter e se borrou todo. Não se preparara
adequadamente para aquele auspicioso instante. Parecia que ele se
vestiu de diarréia e o caldo descia. Não conseguiu nem tirar a arma do
coldre. A onça o olhou e, decepcionada com tamanha exibição de espanto e
terror, virou à direita e entrou na mata, sumindo dos olhos do Carlos,
antes tão corajoso, quanto sonhador, mas acovardado, quase paralisado,
trêmulo e angustiado.
Depois, muito
depois, Manoel Costa de Araujo, seringueiro de um afluente do rio
Guaporé, partiu de canoa para o barracão do patrão desejando que o
batelão a serviço do seringal levasse para Guajará-Mirim a sua mulher,
Maria ferreira da Silva, grávida, em vias de dar a luz. No dia anterior a
embarcação tinha saído naquele rumo. Que pena!
Manoel, um pouco
decepcionado pela perda da chance de descer sem fazer esforço,
acompanhado dos filhos resolveu levar a parturiente de canoa mesmo e,
ora na base do varejão, ora no remo, começou a descer o rio Cautário,
depois adentraria nas águas do Guaporé e, finalmente, no Mamoré.
Andaria até tarde da
noite, para ganhar tempo. Lá pelas tantas, há uns 50 metros à frente,
eis que uma imagem enorme, reluzente, entre o negro e o cinza, levanta
da água, fica um tempo com a grande cabeça erguida e depois mergulha nas
profundezas. O ato da fera, erguendo-se e afundando, criou ondas e
marolas amedrontadoras. A pequena canoa balança, os meninos acordam,
gritos ecoam na noite, Manoel os acalma! Aquele vulto aterrador foi
visto porque a lua cheia brilhava intensa e resoluta.
Prudente, Manoel
conversa com a esposa que também assistiu a aparição daquele monstro, e
resolveram encostar e passar a noite na praia mais acima, para onde
retornou.
Manoel nem dormiu,
haja vista o terror da imagem do monstro do rio. Ficou acordado com o
rifle engatilhado, cuidando da sua riqueza: a família que idolatrava.
Com o dia claro reiniciou a viagem.
PAULO CORDEIRO SALDANHA: Nasceu em 1946, em Guajará–Mirim, Rondônia. É
Advogado e hoteleiro. Foi Presidente de Bancos Estaduais de Rondônia e
Roraima, Diretor do Banco da Amazônia e Diretor–Geral do Tribunal
Regional do Trabalho da 14º Região. Cronista e Romancista. É Membro
Fundador da Academia Guajaramirense de Letras-AGL e Membro Efetivo da
Academia de Letras de Rondônia-ACLER.