Era um dos vários garimpos de ouro que existiam em toda a
extensão do trecho encachoeirado do Rio Madeira. Não recordo bem, mas
penso ser o garimpo do Paredão, distante
duas horas de voadeira, saindo do local onde o
Rio Abunã encontra o Madeira, em direção a Porto Velho. Devia ser umas
nove horas da manhã, pois eu havia acabado de acordar e estava em pé na parte
externa da balsa, observando meu pai colocar seus apetrechos de mergulho.
Com nove anos de idade, não era comum minha mãe deixar eu acompanhar meu pai nas
andanças pelos garimpos, mas como eu estava de férias, ela mesmo receosa,
deixou-me acompanhá-lo. Após colocar sua roupa de mergulho e os tubos de
oxigênio para ajudá-lo a respirar no fundo das águas barrentas do Madeira, ele
veio até mim, beijou minha cabeça,
sorriu e me disse que eu seria um grande homem.
Sorri de volta e disse a ele que o amava. Ele se afastou,
caminhou pelo tablado da balsa e sem olhar para trás, pulou nas águas do
Madeira. Aquela foi a última vez que o vi e desde então a dor de sua perda me
dilacera diuturnamente.
Fiquei em cima da balsa com as outras pessoas, aguardando
seu retorno que deveria acontecer em duas
ou três horas. Em vão, pouco tempo depois, vi que as pessoas se agitaram e
tentaram puxar os tubos de volta do
fundo do rio, mas foi impossível. Meu pai foi soterrado por toneladas de barro
e lama que desce das encostas do Rio Beni e se aloja no leito do Madeira.
Cresci com aquela frase martelando minhas entranhas “Você será um grande homem”. A
profecia não se cumpriu, a perda de meu pai me levou para os caminhos sombrios e destruidores do álcool.
Aos doze anos, saí da casa de minha mãe e passei a viver na rua como pedinte.
Passei a consumir cachaça e o que mais aparecesse, a fim de
encontrar alívio para meus pesadelos. “Sonhava quase todas as noites me
afogando nas águas do Madeira”. Nunca mais voltei ao garimpo e nem tive coragem
de me aproximar do Rio Madeira, onde meu pai foi sepultado.
A tristeza, a descrença e a solidão eram minhas companheiras
inseparáveis. O luto permanente, o olhar
frio e raivoso me fazia sentir ódio das pessoas e de Deus. Porque ele
levou meu pai tão cedo? Porque ele me privou ainda criança da presença
permanente dele? Afundei-me miseravelmente no álcool.
Em alguns bares e botecos da cidade, os proprietários me
davam bebida para que eu não perturbasse o ambiente. Virei motivo de chacota e
as pessoas riam de meus trapos e de minha sujeira.
Nunca tive paz, nunca fui alegre, o meu sorriso carcomido
pelas caries se abria somente quando ganhava um copo de cachaça, alívio fugaz
das minhas permanentes dores. Virei um caco de gente, um indigente fétido a
dormir nas ruas ou nas calçadas.
Muitas vezes apanhei. Espancado, fui empurrado para fora da
vida e permaneci na escuridão, sem dó nem compaixão, sem afeto ou um gesto de
carinho que me devolvesse pelo menos temporariamente o meu sorriso de criança.
Às vezes, durante os temporais da escuridão da alma, eu
vislumbrava fugazmente o braço terno do
meu pai, o calor do seu toque acolhedor me levando para a cama. Vivi dilacerado
e me agarrando nesses fiapos da memória e nessas lembranças infantis.
Essas lembranças eram o meu pequeno refúgio. Lembro-me do
dia em que ele me levou montado em suas costas para comer goiabas no fundo do
nosso quintal. Em suas costas eu me agigantava e apanhava as goiabas mais
suculentas e apetitosas.
Em outra ocasião, ele me levou em suas costas até o portão
da escola. As outras crianças ficaram morrendo de inveja e no outro dia vi que
algumas delas também vieram do mesmo jeito.
No dia em que morri, eu estava sozinho assim como em toda a minha frágil vida de criança. Cai na sarjeta, bêbado e
vomitando sangue, senti apenas o hálito
de meu pai e o toque de sua mão na minha face. Ele me colocou no colo e
caminhamos em direção ao Rio Madeira. Mergulhamos juntos e deslizamos por um
imenso carrossel formado por pedras, madeiras e peixes.
OBS: Estória baseada é em fatos reais. Esse rapaz morreu em
2016 em Nova Mamoré.
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