Saimon Santos |
Através da pouca claridade que chegava até a mim, eu via os filetes d’água marejando através das paredes enrugadas do poço. A água que escorria das paredes formava no fundo do poço uma massa pegajosa e fria como a barriga de lagartixa, envolvendo meus pés, provocando asco, medo e uma monstruosa e friorenta sensação de abandono e desespero.
Folhas vistosas e verdes escuras de samambaias com seus caules esbranquiçados e úmidos se avistavam há poucos metros da embocadura do poço, onde a luz do sol resplandecia com mais frequência. Mais acima, onde o sol demorava-se com mais intensidade, nasceram capebas, muito utilizadas no tratamento das mais variadas infecções cutâneas.
O velho poço abandonado ficava às margens do caminho que interligava a casa dos meus pais com a caloros casa de minha avó materna. Era bem próximo de sua casa, construída à sombra de algumas palheiras, de frente para a rodovia, com suas paredes de tábuas pintadas de verde desbotado e cobertura de cavacos acinzentados, desgastados pela inexorável ação do tempo.
O chão de terra batida,
maciço e avermelhado, parecia encerado e brilhante
como cascas de laranjas maduras. Minha avó tinha os cabelos
longos, lisos, sedosos e brancos como as
plumas do algodoeiro
que crescia em sua porta. Suas roupas eram alvinhas,
perfumadas e sem nenhuma dobra ou vinca, engomadas pacientemente
com seu ferro, cujas brasas quentes e avermelhadas, em seu
interior, se pareciam com o magma incandescente de um
vulcão adormecido.
Do fundo do poço eu
escutava minha avó varrendo o terreiro com sua
vassoura de cipó amarelado, acoplada em um cabo roliço de
Amarelão, com nódulos sobressalentes,
provocando calosidades
em suas mãos magérrimas, com suntuosas veias
azuladas e manchas pigmentárias amarronzadas enfeitando
o dorso e espraiando-se pelos braços
em direção ao coração.
O poço, há muito
abandonado, fora coberta com velhas tábuas sem serventia e
apodrecidas. Eu seguia pelo caminho com uma vasilha de doce
de goiaba nas minhas frágeis mãos de
criança em direção à
casa de minha avó, quando a curiosidade pueril me levou
inocentemente em direção ao convidativo poço.
Comecei a andar
devagarinho sobre as tábuas carcomidas pelo tempo,
resvalei por entre as frestas, e como um acrobata desengonçado,
rodopiei e cai em pé no fundo pastoso
do poço, com a vasilha
de doce intacta e um filete de sangue no lado esquerdo da testa,
provocado pelas farpas pontiagudas da madeira que recobria o
poço.
Olhei para cima e vi borboletas-amarelas
voejando em movimentos circulares,
sobre a boca
do poço. Elas, depois
seguiram em direção à casa de minha
avó, onde ficaram revoando sobre
o teto, pintando-o de amarelo,
devido às escamas que escorriam
de suas asas,
transformando os
cavacos acinzentados em douradas placas de madeira.
Meu desaparecimento
repentino provocou um enorme e desatinado alvoroço
familiar. A notícia espalhou-se e em pouco tempo vizinhos e
curiosos juntaram-se ao grupo liderado pelo meu pai.
Vasculharam esmiuçadamente a capoeira que crescia entre nossa casa
e a casa de minha avó, enquanto eu soluçava baixinho,
sentada na lama fria no fundo do poço.
Ouvia passos apressados
e gritos abafados que reverberavam no
interior do poço como ecos distantes. Meus soluços e gritos
infantis não tinham o mesmo alcance e mal chegavam na
desembocadura do poço. Cansado, mais não desanimado, meu pai
lembrou-se do velho poço abandonado, único local que não
fora vasculhado pelo grupo.
Até hoje me recordo das
mãos trêmulas e aconchegantes de meu pai, quando ele
me amarrou em uma corda de encontro ao seu corpo e
silenciosamente fomos puxados para fora do poço, onde uma multidão
exultante nos aguardava.
Durante a subida, ao
passar pelas samambaias, toquei levemente em suas
folhas verdes escuras e seus esporos caíram solenemente,
entrelaçando-se com a lama fria e salgada do
fundo do poço,
germinando dias depois, para deleite das borboletas-amarelas.
Autor: Simon O. dos Santos – Texto
extraído do livro “ Causos e Crônicas do Berço do Madeira”, publicado em 2022.
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