Nosso tapiri assoalhado ficava há poucos metros da margem do igarapé. Do terreiro, eu via as jatuaranas pulando ao encontro das sementes de seringueiras que caiam quando o sol estendia seu manto quente sobre as copas das árvores. Entre o tapiri e o igarapé, cresciam helicônias multicores, como se fossem grandes araras silenciosas que murcharam, para meu espanto, após a passagem do meu marido em direção ao igarapé.
Era cedo, muito cedo e a cortina de fumaça da borracha defumada do dia anterior ainda resistia baixinha, quase beijando a água límpida e a areia amarelada do Lages. Vi quando ele sumiu na penumbra acinzentada de fumaça e reapareceu em cima das pedras, para sumir de novo nas águas frias e transparente do Lages, que descia silenciosamente desde o Serra dos Parecis ao encontro das águas turvas e barulhentas do Rio Mamoré.
A Colocação Sacassaia, fazia parte do seringal do Sebastião João Clímaco. Meu esposo foi o primeiro seringueiro a desbravar suas entranhas e demarcar as “estradas de seringas” que serpenteavam as curvas e cotovelos do Igarapé Lages. Eu o conheci em Vila Murtinho. Lembro-me do dia em que ele me levou até a Cachoeira Madeira, num final de tarde. Caminhamos pela areia escaldante do sol de setembro até o pedral onde os homens pré-históricos deixaram suas marcas incrustadas.
Naquela tarde, ele deixou em mim a marca do silêncio. Seus olhos pareciam duas sementes de seringueira, marrons rajadas de preto. Seus olhos eram ovais como essas sementes e flutuavam de suas órbitas, como as sementes quando caiam nas águas do Lages. Naquela manhã, quando o vi pela última vez em cima das pedras do igarapé, senti que seus olhos me abraçaram e me beijaram silenciosamente.
Meu marido quando encerrava a lida diária do corte e preparo da seringa, descia até o Lages e deixava um anzol de espera no poço do pedral. Em toda a extensão do Lages, este era o local mais profundo. Ele dizia que a parte central do poço deveria ter uns seis metros de profundidade, lá onde a água era mais escura e quase não corria.
Naquela fatídica manhã, meu esposo se alegrou após perceber que fisgara um peixe grande, pois a linha estava rija na parte mais funda do poço. Ao tentar puxa-la notou que o peixe estava engatado em alguma coisa. Forçou várias vezes e não conseguiu movê-lo. Ele, então, seguindo a direção da linha, mergulhou e chegou ao local onde o peixe estava. Ao tentar puxa-lo, o anzol saiu de sua boca e cravou-se violentamente em suas costas, prendendo-o para sempre no fundo do igarapé.
Todas as noites de lua cheia, uma mulher banguela, cheirando a látex, vestida com flores de helicônias multicoridas é vista no pedral olhando silenciosamente para as águas reluzentes do Lages, onde está seu esposo, a espera de que alguém retire o enferrujado anzol de suas costas. A espera eterna é uma pedra na emória, que rola sem parar no tempo sem-fim.
Autor: Simon Oliveira dos Santos – Texto extraído do livro “ Causos e Crônicas do Berço da Memória, publicado em 2022.
OBS: A Pedra da Memória está localizada no Igarapé Lages, que demarca os limites entre os municípios de Nova Mamoré e Guajará-Mirim. Durante o período seco, torna-se um balneário frequentado por banhistas de ambos os municípios.