"Causos e Crônicas do Berço do Madeira e da Pérola do Mamoré": A MULHER QUE ASSOMBRA A PEDRA DA MEMÓRIA

Por Simon Oliveira dos Santos
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O Mamoré
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Nunca mais casei, morri sozinha, sem filhos, parentes ou amigos. Desde o dia que fiquei viúva, nunca mais comi peixe e me recordo todos os dias, a última vez que vi meu esposo caminhando em direção ao Igarapé Lages, descalço, trajando apenas um calção desbotado, amarrado com embira no cós. Levava um terçado velho, sem cabo, cujo gume tinha mais dentes que minha dentadura que meu pai me deu ainda mocinha, e que eu escovava com areia fina do igarapé, até ficar reluzente, pois foi o único presente que ganhei em toda minha vida.

Nosso tapiri assoalhado ficava há poucos metros da margem do igarapé. Do terreiro, eu via as jatuaranas   pulando ao encontro das sementes de seringueiras que caiam quando o sol estendia seu manto quente sobre as copas das árvores. Entre o tapiri e o igarapé, cresciam helicônias multicores, como se fossem grandes araras silenciosas que murcharam, para meu espanto, após a passagem do meu marido em direção ao igarapé.

Era cedo, muito cedo e a cortina de fumaça da borracha defumada do dia anterior ainda resistia baixinha, quase beijando a água límpida e a areia amarelada do Lages. Vi quando ele sumiu na penumbra acinzentada de fumaça e reapareceu em cima das pedras, para sumir de novo nas águas frias e transparente do Lages, que descia silenciosamente desde o Serra dos Parecis ao encontro das águas turvas e barulhentas do Rio Mamoré. 

A Colocação Sacassaia, fazia parte do seringal do Sebastião João Clímaco. Meu esposo foi o primeiro seringueiro a desbravar suas entranhas e demarcar as “estradas de seringas” que serpenteavam as curvas e cotovelos do Igarapé Lages.  Eu o conheci em Vila Murtinho. Lembro-me do dia em que ele me levou até a Cachoeira Madeira, num final de tarde. Caminhamos pela areia escaldante do sol de setembro até o pedral onde os homens pré-históricos deixaram suas marcas   incrustadas.

Naquela tarde, ele deixou em mim a marca do silêncio. Seus olhos pareciam duas sementes de seringueira, marrons rajadas de preto. Seus olhos eram ovais como essas sementes e flutuavam de suas órbitas, como as sementes quando caiam nas águas do Lages. Naquela manhã, quando o vi pela última vez em cima das pedras do igarapé, senti que seus olhos me abraçaram e me beijaram silenciosamente.

Meu marido quando encerrava a lida diária do corte e preparo da seringa, descia até o Lages e deixava um anzol de espera no poço do pedral. Em toda a extensão do Lages, este era o local mais profundo. Ele dizia que a parte central do poço deveria ter uns seis metros de profundidade, lá onde a água era mais escura e quase não corria.

Naquela fatídica manhã, meu esposo se alegrou após perceber que fisgara um peixe grande, pois a linha estava rija na parte mais funda do poço. Ao tentar puxa-la notou que o peixe estava engatado em alguma coisa. Forçou várias vezes e não conseguiu movê-lo. Ele, então, seguindo a direção da linha, mergulhou e chegou ao local onde o peixe estava. Ao tentar puxa-lo, o anzol saiu de sua boca e cravou-se violentamente em suas costas, prendendo-o para sempre no fundo do igarapé.  

Todas as noites de lua cheia, uma mulher banguela, cheirando a látex, vestida com flores de helicônias multicoridas é vista no pedral olhando silenciosamente para as águas reluzentes do Lages, onde está seu esposo, a espera de que alguém retire o enferrujado anzol de suas costas. A espera eterna é uma pedra na emória, que rola sem parar no tempo sem-fim.

Autor: Simon Oliveira dos Santos – Texto extraído do livro “ Causos e Crônicas do Berço da Memória, publicado em 2022.


OBS:  A Pedra da Memória está localizada no Igarapé Lages, que demarca os limites entre os municípios de Nova Mamoré e Guajará-Mirim. Durante o período seco, torna-se um balneário frequentado por banhistas de ambos os municípios.








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